O Andarilho
19.09.2011
MAURITÂNIA, SUL DO MARROCOS
E eis que finalmente ruge a grande besta. Após mais de 8hrs de espera, finalmente escuto o apito de partida. “Segure-se firme!” dizem meus mais novos amigos. Ouço uma sequência de choques entre os vagões que atinge rapidamente o nosso, um dos últimos dos impressionantes 170 vagões do maior trem do mundo. O choque é violento e o barulho intenso. Pronto! Todos os vagões estão agora tensionados e a gigantesca fera começa a se movimentar. É o início de uma das minhas maiores aventuras, uma das noites mais incríveis da minha vida.
Estou com um grupo de mais quatro rapazes dentro de um vagão de carga de minério de ferro. É mais uma das 3 viagens diárias rumo às minas de ferro no interior da Mauritânia, no sul do Marrocos. Os números são impressionantes: 2,5kms de comprimento, cerca de 170 vagões por viagem, 200 toneladas de minério cada, 3 trens lotados todos os dias, 7 dias por semana.
O trem leva também passageiros que trabalham ou vivem nas cidades que ficam no interior do deserto do Sahara. Leva também cabras, camelos, carros e famílias inteiras. As cabras são alcançadas do interior do vagão pelas pernas e gritam desesperadas. É preciso ser rápido pois o trem já vai partir. Há apenas dois vagões de passageiros que são pagos e é preciso apertar-se entre a multidão para conseguir entrar e tomar posse de um bom lugar para deitar-se no chão. Os outros 168 vagões de carga estão vazios e são gratuitos, afinal, na África, paga-se caro por um pouco de conforto.
Estendemos um cobertor no chão para deitar-nos e evitar o contato com o frio do fundo metálico e a fuligem escura que cobre a superfície. É noite de lua cheia, única testemunha desta noite de novas sensações e muitos pensamentos. O trem parte e começa a acelerar. Ouve-se novamente o apito de uma das 3 locomotivas há uns 2kms de distância do nosso vagão. Deitado no chão frio, a fuligem começa a levantar-se com o vento e é preciso cobrir até mesmo os olhos para evitar o contato das pequenas partículas de ferro com os olhos. A viagem continua portanto em total escuridão. O barulho é indescritível e possui inúmeras variações interrompidas por esporádicos solavancos que fazem os corpos saltarem no ar. A sensação é de estar viajando dentro de um trovão. Nos pequenos intervalos que consigo dormir, tenho os mais estranhos e bizarros sonhos.
O trem segue, sempre em linha reta, rumo ao leste. Meu destino é a pequena cidade de Choum, situada num vale coberto de pedras, pequenos arbustos e areia. Acordo com a primeira luz do dia no exato momento em que o trem chega finalmente na estação. Estamos todos cobertos por uma fina camada de fuligem e areia branca. Tenho areia por todo o meu corpo. Meus olhos estão secos e meus dedos já não passam mais por entre meus cabelos sujos de poeira. Salto do trem e o vejo partir. Fim do primeiro ato. O próximo começa a parecer-se ainda mais duro.
O sol começa a nascer na pequena vila de Choum. A temperatura nesse horário, em torno de 32ºC, deixa claro como será o restante do seu dia. É seco e quente. Vejo na frente das casas imensos tapetes de plástico com pessoas ainda dormindo em cima deles. O interior das casas é tão quente que é melhor dormir fora delas. Me oferecem um chá enquanto aguardo a pick-up Hilux ser carregada para partir ao destino final do dia, a cidade de Atar, 120km de Choum. A passagem custa 3.000 ouguiyas dentro e 2.000 na carroceria. Para economizar, digo meio incerto que vou atrás mas ao ver a enorme pilha de bagagem sendo acumulada eu mudo de ideia rapidamente. A viagem é pelo meio do deserto e, em um dos inúmeros buracos, quase perdemos um dos passageiros. A vida não é nada fácil por aqui.
A África realmente começa aqui na Mauritânia, não no Marrocos como vocês podem ver no mapa. É impossível explicar essa sensação. É como sentir-se vivo pela primeira vez. É como estar desnudo e ver-se no espelho sem máscaras, sonhos ou desejos. É um despertar. A vida é dura por aqui, há lixo e carros abandonados por todos os lugares. O vento, enquanto cabras mastigam desinteressadamente pedaços de papelão, arrasta tudo de um lado para o outro cobrindo pequenas árvores com coloridas sacolas plásticas.
Nas cidades mais turísticas, as pessoas esperam por algo para fazer durante a baixa estação e em vários desses encontros você tem a desagradável sensação de ver-se forçado a comprar um artesanato qualquer para poder ajudar uma família inteira a comer durante aquele dia ou, quem sabe, durante a semana inteira. É uma sensação amarga essa de você possuir o poder de escolher quem vai comer ou não.
As pessoas são incrivelmente gentis. Durante um passeio qualquer pela cidade você acaba parando inúmeras vezes para tomar um chá e conversar sobre futebol. A conversa começa animadamente assim: “Salam Aleikum”, “Salam”, “Ça vá?”, “Ça vá bien?”, Tudo bem com você? E a família? Vai bem? E você? Tudo bem? Sente-se bem? “Ça vá?!” “Oh, brèsilian?!” “Ronaldo. Ronaldinho. Kaká...”
O resto da história na semana que vem. Insh´Allah!
Locomotivas do maior trem do mundo.
Interior do vagão de transporte de minério de ferro.
Camelos, ou melhor, dromedários, mastigando qualquer coisa no deserto.