O Andarilho
16.11.2011
FESTA DO CARNEIRO, CHAMADA AQUI NO NIGER DE TABASKI, OU EID AL-ADHA NO MUNDO áRABE
Eis que chega finalmente o grande dia. Todos prontos para a grande festa muçulmana. Após meses de preparação e de todos os tipos de privações, é hora do grande sacrifício. Durante toda essa espera, muitos passaram sede e fome, foram separados de suas famílias, viajaram apertados em barcos, em motocicletas, porta-malas de carros, amarrados em tetos de ônibus ou ensacados em seus bagageiros. Aguardam já impacientes pelo fim de tudo isso.
É o dia tão aguardado da festa do carneiro, chamada aqui no Niger de Tabaski, ou Eid al-Adha no mundo árabe. Mas os convidados especiais não tem nenhum motivo para celebrar já que não foram eles que inventaram essa história. Apenas tiveram o azar de um deles estar passando por acaso no momento crucial no qual Abraão, para demostrar sua fé em Deus, estava prestes a sacrificar a vida de seu próprio filho no alto daquela montanha. Podia ter sido qualquer outro animal mas aquele incidente iria mudar a história da sua espécie para sempre. Assim, ao invés de seu próprio filho, Abraão sacrifica em seu lugar um carneiro e a história vai parar no Antigo Testamento e é celebrada todos os anos pelos muçulmanos.
É um dia especial e você logo nota isso. Ao sair do hotel sente-se já aquele ar leve e alegre nos semblantes das pessoas. Até os cães parecem mais felizes. É feriado, dia de festa em todo o mundo muçulmano. Nas ruas mulheres em burkas coloridas e crianças em roupas de domingo (como dizia-se na região em que eu cresci) dirigem-se para as mesquitas da cidade de Diffa para fazer a primeira oração do dia. São 9h00 da manhã e a hora do sacrifício se aproxima.
Após achar um lugar onde consigo felizmente tomar um café e comer uma omelete com pão, saio pelas ruas da cidade com minha câmera nas mãos. São cerca de 10h00 da manhã e a degola já começou no terreiro de algumas casas. Caminho até uma pequena vila no meio da savana para poder registrar a festa em um lugar mais tradicional. O sol já começa a castigar os viajantes e a areia fofa faz com que locomover-se seja uma tarefa mais difícil do que a habitual. Chego lá exausto e as pessoas olham-me incrédulas parecendo não acreditar no que veem em sua frente.
Chego no momento em que os anciões da vila abençoam os carneiros passando suas mãos três vezes da cabeça até a cauda do animal. Crianças também brincam de abençoar os animais. Mulheres, jovens, todos ao redor fazem esse gesto que mais parece um pedido de perdão. Após segurados firmemente pelos chifres são direcionados para perto de um pequeno buraco cavado recentemente na areia. É lá que seus pescoços são posicionados e uma faca afiada corta impiedosamente suas gargantas e o sangue começa a escorrer e a vida a apagar-se lentamente.
Ao voltar à cidade, vejo já vários carneiros espetados com dois longos espetos de madeira formando um X. Ao redor, um fogo de chão com grossos troncos começam a queimar e mais carneiros já preparados são colocados ao lado. O cheiro começa a espalhar-se pela cidade, parece Porto Alegre em dia de domingo. Todos nas ruas estão felizes como eu nunca havia visto antes na África.
O carneiro do hotel em que estou hospedado parecia já saber do seu destino. Passou o dia anterior e toda a noite berrando desesperadamente por misericórdia mas nada que ele pudesse fazer mudaria o final da sua história. No final da tarde, o proprietário do hotel trouxe-me uma panela. Dentro, costeletas de carneiro. Sim, era inegavelmente o pobre animal do hotel que não estava mais lá desde cedo. Após ter visto tanta degola durante o dia, comi aquela carne com um grande peso na consciência.
À noite, percebi uma grande aglomeração de pessoas no bar do hotel. Era feriado e dia para celebrar. Uma banda preparava-se para tocar mais tarde e fiquei lá aguardando, esperando poder ouvir um bom concerto. Em Curitiba tem um grupo chamado “A banda mais bonita da cidade” mas aqui em Diffa encontrei “A banda mais barulhenta da cidade” e, por que não dizer, do mundo inteiro. Foram horas de torturas com vozes estridentes, microfonia, instrumentos desritmados e o mesmo ritmo para todas as músicas. Felizmente conheci no bar um alemão que trabalha como voluntário aqui e demos boas risadas da situação. É a única banda da cidade e eles tocam todos os dias aqui. Senti pena por ele mas parecia já conformado com a situação pois veio até com plugs de ouvido para tornar a noite mais confortável.
Abraços e até a semana que vem.
Mulheres em direção à mesquita para a primeira oração do Tabaski.
O sacrifício do carneiro.
Assando o carneiro sacrificado