O Andarilho

23.10.2011

“O QUE é QUE EU ESTOU FAZENDO AQUI!”

Embaixo de uma tenda improvisada com minha echarpe (nunca viaje sem uma) aguardo já impaciente a partida do barco para o próximo destino da viagem, a cidade de Gao, nas margens do rio Niger. Nunca acredite nos horários africanos! No fundo você tem sempre uma esperança de que o barco vai sair mesmo às 11h00 conforme o prometido mas ela vai enfraquecendo aos poucos e às 13h00 desaparece completamente. Mas você continua lá, no teto daquele barco, guardando estupidamente um lugar e pensando “O que é que eu estou fazendo aqui!”

 

Mas, a viagem é sempre generosa aos viajantes que sabem esperar e aquele dia comprovaria novamente essa minha teoria. Esperar é realmente um duro aprendizado que leva mais tempo do que você imagina para atingir sua maestria. E eu que achava que já tinha atingido-a durante minha viagem pela Ásia mas a África insiste em mostrar-me que ainda faltam algumas lições. O jeito é desligar-se reduzindo os pensamentos, afinal, o tempo existe apenas enquanto pensamos.

 

Esse não é o dia do início da viagem. Ela começou há dois dias atrás e acabei de encontrar um novo barco para fazer a outra metade do trajeto pelo rio. O Niger começa no sul do Mali e atravessa uma grande região de deserto mais ao norte do país. Suas águas são calmas e nas margens pode-se ver centenas de vilas com casas de adobe, dunas de areia, regiões alagadas onde cresce capim nos quais sobrevoam grupos de pássaros e, se você tiver sorte, até hipopótamos aparecem ao entardecer para seu banho diário.

 

Na primeira noite consegui encontrar um bom lugar para dormir no teto do barco pois na parte de baixo todos os sacos de arroz ou sorgo já estavam ocupados. Em cima, encontrei ainda vagos um saco de arroz e outro que não pude identificar direito o conteúdo. Meu travesseiro improvisado era um galão de 25 litros de óleo vegetal que tinha um cheiro estranho que ficou em minha roupa por um bom tempo. Consegui repousar minhas pernas em cima de uma caixa de metal, tipo um congelador horizontal, que era usado para guardar as bagagens da tripulação. Quando você tem sono, você acaba dormindo nos lugares mais improváveis. Não há conforto algum mas ainda assim é mais confortável do que viajar como os carneiros pois pelo menos não pegam a gente pelos chifres e jogam num minúsculo compartimento.

 

Como havia entrado nesse primeiro barco às pressas, não havia levado água suficiente e nem comida. Isso me fez passar por uma experiência que jamais havia provado e, agora que tudo passou, fica de lembrança o gosto da água do Niger e também da culinária africana. Nos barcos há sempre uma cozinha improvisada com um panelão aquecido com lenha ou carvão o que deixa o lugar sempre todo cheio de fumaça. Para o almoço, arroz empapado ao óleo vegetal. Divide-se a refeição em diversas bacias de metal, uma para cada grupo de até 10 pessoas. Aí você diz “Bismiléh” para agradecer à Allah pela comida e começa a pegar o arroz com a mão e fazer pequenas bolas que possam caber na sua boca. Comer assim, é uma grande lição de humildade que jamais esquecerei. Para a janta e o café da manhã, não adianta pedir para dar uma olhada no menu pois você logo escuta o mesmo som de arroz entrando em contato com óleo fervente e o mesmo cheiro das refeições anteriores espalha-se pelo ar. Sim, que saudades da comida lá de casa!

 

Na segunda noite dormimos na casa do proprietário do barco que ficava numa minúscula vila há apenas 7 kms da cidade que eu imaginava chegar e tomar uma coca-cola gelada e jantar no Mc Donalds. Os planos haviam mudado e o que mais me incomodava era saber que teria que jantar arroz novamente que veio naquela noite com uma novidade: peixe seco ao sol. Consegui felizmente comprar um pacote de biscoitos que acabou salvando o meu dia e pude dormir tranquilo dentro do mosquiteiro instalado no terreiro da casa. Acabei dormindo ao lado do carneiro da família que não demostrou incomodar-se com minha presença. Felizmente ele não roncou durante a noite e consegui ter uma boa noite de sono repleta de sonhos e pensamentos. Pela manhã, crianças vieram me ver e ficaram lá ao meu redor pedindo fotos e presentes. Uma delas me deu o bebê da família para  segurar e ele ficou tão tranquilo no meu colo que tive novamente uma daquelas sensações inexplicáveis de sintonia e paz com a vida.

 

Ao entardecer do terceiro dia cheguei numa simpática vila e saí para caminhar por entre as dunas na margem do rio para receber a minha recompensa após aquela difícil espera sob o sol no teto do segundo barco. Não tive que caminhar muito para encontrar aquele grupo de cerca de 100 nômades preparando a caravana para partir novamente ao deserto. Tudo parecia estar já pronto e algumas mulheres e homens amarravam ainda os seus últimos pertences nos burros que aguardavam com aquela mesma calma de sempre. A cena era impressionante. Mulheres, crianças, carneiros, carneirinhos, cabras, burros e dezenas de bois e vacas. A marcha começa e a poeira toma conta do cenário. Coisas caem dos burros. Carneirinhos caem também. Crianças deixadas para trás correm chorando desesperadas em busca de suas mães. Mulheres e homens gritavam tentando organizar o caos que tomava conta do início dessa longa marcha noturna. As crianças me olhavam com expressões de cansaço sem demonstrar qualquer emoção e faziam com que o meu dia terminasse com uma perplexidade ainda maior do que a habitual.

 

Abraços e até a semana que vem.

Viagens sem frescuras.

Cozinha em um dos barcos.

Nômades em caravana partindo para o deserto.

Edson Walker