O Andarilho

29.11.2011

MEMóRIAS DO CáRCERE

Era um daqueles finais de tarde nos quais a gente se sente feliz. Um daqueles inexplicáveis momentos em que descobrimos com total admiração que estamos novamente apaixonados e que não tem mais volta. Uma certa euforia preocupada toma conta do corpo e sorrimos. Não é fácil amá-la. É preciso tempo, paciência e compaixão. Ali na beira daquele rio tudo parecia em harmonia. Crianças tomando banho, mulheres sorrindo, homens pescando e a natureza se preparando para mais um final de dia. É assim que começa a minha história.

 

De repente um senhor se aproxima. Vejo logo estampado em seu rosto, problemas. Graves problemas! “O massara aí por acaso tem autorização do Ministério das Comunicações do Chade para tirar fotos?” Ups! “Bom, é que eu... Autorização?! Do que é que o senhor está falando?” Imediatamente meu instinto acende a luz vermelha. Isso não me parece nada bom. Discutimos um pouco e ele me pede para acompanhá-lo. Tento resolver o problema ali mesmo mas o cara parece mesmo decidido a me levar para a delegacia. Logo se acalma e me pede se não “tenho algo para lhe dar”. A situação pede cautela e tenho que pensar rapidamente e resolver isso o mais rápido possível. Dou-lhe cerca de R$ 4,00 e ele vai embora. Pego minha câmera, coloco na mochila e volto imediatamente ao hotel.

 

A primeira coisa que meu “amigo” fez foi me entregar para os primeiros militares que encontrou num posto ali perto. Dois minutos depois, dois deles fecham meu caminho com sua moto e agressivamente pedem para ver minha câmera. Sem ter outra escolha tenho que mostrar as últimas fotos que fiz. Um deles agarra a câmera de minhas mãos e ficamos lá disputando para ver quem  ficaria com ela.  A situação é tensa e várias pessoas param para ver o que está acontecendo. Me obrigam a montar na moto e começa assim uma longa história.

 

Sou levado para a sede do exército da vila. Vários oficiais me interrogam, apreendem minha câmera e meu passaporte. Me acusam agora de não ter autorização do Ministério de Turismo para viajar pelo país. “É, andarilho. Sujou pro seu lado!” Logo me transferem para o posto da polícia de imigração perto dali. Já está escurecendo e os milhares de morcegos que se protegiam do sol nas gigantescas árvores ao redor saem para caçar. Na delegacia, vários comissários, policiais e o delegado me fazem as mesmas perguntas e acusações. Não tem mais jeito. Um “alvará” de soltura agora parece cada vez mais difícil.

 

Após alguns minutos de indecisão, permitem com que eu durma naquela noite no hotel mas as batidas do meu coração não me deixam adormecer. O dia seguinte seria difícil. Volto bem cedo à delegacia para recuperar meu passaporte e câmera. Enquanto espero os responsáveis chegarem, assisto ao espetáculo de milhares de gigantescos morcegos retornando às árvores para dormir novamente. Aquilo não me parecia um bom sinal.

 

Sou interrogado novamente. Dessa vez até mesmo o governador apareceu. Acusam-me agora de que meu visto não é de turismo e o problema só aumenta. Revistam minhas coisas no hotel. Apreendem computador, cartões de banco e meu dinheiro. No sábado a tarde decidem me levar para a delegacia da capital e buscam minhas coisas para passar a noite lá com eles. Volto do hotel com minha mochila e pergunto quanto custa a diária ali e se posso dar uma olhada no quarto. Todos caem na gargalhada.

 

Vou jantar depois escoltado por um policial. O cara é legal, nem consigo sequer odiá-lo e acabo pagando a refeição para ele também. O domingo seguinte é de angústia e espera. Seria transferido na segunda-feira e a noite ainda estão tentando arrumar dinheiro para pagar a passagem de ônibus do policial que vai me acompanhar. Como não encontram nenhum responsável que possa resolver a situação, param, pensam e olham para mim. “Ah não! Nem pensem!” Mal posso acreditar mas realmente pedem se eu aceitaria pagá-la. Olho para eles, dou risada, cruzo os braços. “Nem pensar!!”

 

Sou finalmente transferido na segunda após o almoço. O policial me entrega numa delegacia de aparência assustadora. A sala de “recepção” tem vários soldados, teias de aranha, areia, motos, chulé, metralhadoras e uma mesa com vários tijolos substituindo a perna ausente. Sentado no chão tento aceitar o meu destino. Na mesma noite sou interrogado por homens de terno e gravata. A situação só se complica. Querem saber tudo sobre mim. “Se você é mesmo um turista, porque você não foi visitar ainda o museu para ver o crânio do Toumai, uma relíquia da humanidade de mais de 7 milhões de anos? Esse teu nome Walker. Isso é nome de americano. Edson? Isso lá é nome de brasileiro?”

 

Começou assim uma grande espera que terminou apenas no sábado na hora do meu voo para o Egito. Mal podia acreditar. Estava sendo tecnicamente deportado do país.

 

Quando a gente tem fome, pensamos apenas em comida. Quando não somos livres, pensamos apenas em liberdade. Aprendemos muito com a falta dela. Termino citando um trecho do livro que me acompanhou durante esses 7 dias: “Obrigado por tudo. Não tenho nenhuma reclamação a fazer”.

 

Abraços  e até a semana que vem.

 
Perfil esquerdo.

Frontal.

Perfil direito.

Edson Walker