O Andarilho

20.11.2011

“LE ROMAN DE LA VIE”, OU VIVER A VIDA

A mesa está posta e todos os convidados aguardam ansiosamente a entrada do aniversariante para começar finalmente o banquete. Luxuosas frutas competem em brilho e beleza com a prataria cuidadosamente arrumada sobre a toalha branca. O cenário é a sala de jantar de uma exuberante mansão. Seu proprietário e aniversariante, um senhor de idade com um caprichoso bigode entra em cena. Em seu rosto, traços já envelhecidos, porém ainda elegantes, sugerem que foi muito bonito em sua juventude e que soube aproveitar bem sua vida.

 

A luz azulada emanada da caixinha de ilusões é refletida nos rostos da família deitada sobre o tapete colocado despreocupadamente sobre a areia do pátio da casa de paredes de areia. Olham aparentemente sem  muita emoção para os personagens que se movem lá dentro da televisão colocada ali provisoriamente após o jantar. Sinto ainda o gosto do molho de carne e arroz (com algumas pitadas de areia, afinal, estamos no deserto) que acabamos de comer ali no chão no mais tradicional estilo africano: homens de um lado, mulheres de outro. Reúnem-se ao redor de uma grande bacia, afinal, as famílias aqui são sempre numerosas, e com as mãos, alimentam-se.

 

Na tela, Tarcísio Meira apaga as velas do bolo de seu 125º aniversário e todos cantam felizes “Joyeux anniversaire”. Com seu bigodão, engana bem e até parece um francês com sua voz dublada, o que causa a princípio um certo estranhamento. A história é traduzida como “Le Roman de la Vie”, ou Viver a Vida, para vocês aí no “Brésil”. Sinto-me meio estranho lá no meio daquelas pessoas tão generosas e acolhedoras. Queria apenas poder desligar aquela insanidade e olhar em silêncio a 4ª lua cheia dessa viagem.

 

Essa história começa no deserto, em uma vila na fronteira do Niger com o Chad. No dia seguinte iniciaria uma viagem inimaginável de 3 dias até a capital N'Djamena, que na verdade nem fica tão longe assim mas vocês precisam antes de mais detalhes das condições do caminho para entender porque percorrer 700 kms demora tanto tempo assim.

 

Não existe nenhum sistema de transporte oficial nessa região para esse trajeto. Na verdade, nem mesmo existe estrada para isso mas mesmo assim um comboio de cerca de 10 carros iria partir naquela manhã após as formalidades legais da aduana e eu já havia pagado os R$ 80,00 por meu assento em um deles. Esses carros são todos importados dos EUA e Europa, alguns novos, outros usados. Os motoristas vão buscá-los no porto do Benim e fazem uma lendária viagem de mais de 3.000kms até a capital do Chad. A vida torna-se dura longe do mar para os países da África central.

 

Alguns são carros luxuosos, outros apenas utilitários. O motorista do mais luxuoso deles, uma Toyota Highlander, aparentemente nova, começa pedindo-me R$ 200,00 reais para o assento ao seu lado. Como não sou uma pessoa muito ligada ao luxo, continuo a negociação com os outros e acabo acertando em R$ 80,00 para ir em algo mais simples, um Toyota Corolla ano 2005. Olho para o senhor da primeira oferta e penso “Hum, querendo me explorar, né? Malandrão você, né?” Porém, mais tarde, essa história ensinaria uma grande lição para mim pois ele acabou sendo um dos mais amigos e generosos do grupo todo. Nunca julgue ninguém. Há muita coisa boa no ser humano que nem sempre são claras e refletidas em sua aparência ou em seus atos.

 

Partimos para o deserto. O caminho é pela areia mesmo e muitas vezes divide-se em várias direções e é preciso muita experiência para não ficar atolado nas áreas com areia fofa. Com carros de passeio isso torna-se uma tarefa muito difícil e o grupo para inúmeras vezes e ajuda a desatolar os carros afundados na areia. O motorista ao meu lado não é um homem de muitas palavras. Gasta pouco do seu francês comigo mas demostra ser um excelente motorista. Enquanto ouvimos música sudanesa, diz estar cansado da África e me pergunta o que eu vim fazer num lugar como esses. “Não tem nada aqui.”

 

No final do primeiro dia chegamos numa pequena vila com casas de areia branca. Uma mulher havia falecido naquela tarde e sua cova já estava pronta para o seu enterro. Vejo os homens da vila trazendo o corpo para o meio da praça e todos, virados para o nascente, colocam-se em filas e oram pela alma da pobre mulher. Ouço choros do grupo das mulheres que ficam na casa ao lado. A oração termina, carregam-na para a cova, ali na duna mais próxima e cobrem o corpo com folhas verdes e após, com pás ou mesmo com as mãos, preenchem a sepultura com areia. Em silêncio, lavam suas mãos e todos voltam para a vila. Atrás, fica apenas a sepultura que desaparecerá em alguns meses assim como todas as anteriores.

 

Ao anoitecer, saí para dar uma volta e quando retornei à praça um carneiro estava já sendo pendurado em uma árvore. O líder do comboio havia comprado ele ali mesmo e todos ajudamos a preparar a carne para o nosso jantar. Colocaram quase de tudo do animal dentro de um panelão. Foi rim, fígado, coração e inclusive, para o meu desespero, o estômago. Sob a luz da lua fizemos uma fogueira e cozinhamos o pobre animal com cebola e extrato de tomate. Por incrível que pareça ficou delicioso mas eu não sei se comi algum pedaço de estômago pois estava muito escuro.

 

Como diria Marco Polo, isso é apenas 10% de tudo o que vi durante a semana que passou. Abraços  e até a semana que vem.

Praça do primeiro acampamento da viagem.

Mulher lavando louça no lago Chad

Última oração.

Edson Walker