O Andarilho

16.10.2011

ALLAH AKBAR!

O chamado para a oração vindo dos alto-falantes das mesquitas ecoa pelas ruas empoeiradas das cidades do Mali. É assim que começa mais uma das 5 orações diárias dos muçulmanos. Após um ritual de lavagem dos pés, mãos e cabeça, posicionam seus corpos em direção à cidade sagrada de Mecca e pedem pela intervenção do Deus misericordioso.

 

Como pode, me pergunto, um Deus todo poderoso permitir um mundo como a África? Ao viajar por países como o Mali, é difícil continuar acreditando que ele possua vontade própria e que seja de sua natureza intervir na sua criação. Eu o entendo como sendo a própria vida, essa energia incompreensível que, ao acaso, constrói e destrói constantemente. O homem provavelmente nem sequer foi planejado por ele. É apenas mais uma das manifestações dessa energia que podemos sentir neste universo.

 

O homem sofre em sua ignorância. Sente-se abandonado pelo criador e coloca nele a responsabilidade por todo o seu sofrimento. Mal sabe ele que sofre apenas por causa da sua confusão mental que vem do karma herdado e repassado de geração à geração, desde os tempos das histórias de Adão e Eva. Um ciclo, uma roda muito difícil de conseguir sair.

 

O pecado original não vem de uma fruta comida furtivamente por mera influência de uma suposta força antagônica à criação. Não creio nessa dualidade da natureza a não ser na mente humana que interpreta a vida de maneira obtusa, que lê textos religiosos de maneira superficial e hipócrita e é controlado pelos seus instintos. A consequente queda do paraíso não vem da desobediência de uma lei absurda dada por um Deus manipulador e punitivo. O fruto, dito proibido, não é uma inocente fruta mas sim o surgimento da própria consciência no ser humano. É o surgimento da questão primordial “Quem sou Eu, de onde Eu vim e para onde Eu vou”. O fruto metafórico do conhecimento, origem de toda dor que persegue os descendentes dessa parábola até os dias de hoje.

 

A triste história da África insiste em prevalecer. Nunca foi fácil ou justa. Chegaram os europeus durante o colonialismo e a corromperam mais ainda. Dividiram o continente criando fronteiras que antes não existiam. Desestruturaram politicamente lideres locais colocando tribos rivais sob o domínio de um governo central. Após a revolução industrial, quando tornou-se mais interessante conquistar mercados consumidores para os produtos manufaturados na Europa em troca de matéria-prima, foram novamente abandonados com um complexo presente inventado pelo homem branco chamado democracia. Mais corrompidos do que antes, grupos étnicos maiores começaram a governar os países de acordo com seus próprios interesses. Guerras étnicas tornaram-se constantes e ainda continuam em vários países do continente africano.

 

A exploração e manipulação da grande maioria desses estados nunca deixou de existir e vai continuar ainda até a última gota de sangue possível de ser comprada. No Mali, por exemplo, um complexo e perverso jogo político internacional faz com que a vida aqui seja ainda mais difícil. O ex-ditador líbio Kadafi era um dos grandes aliados econômicos do país e provavelmente muita coisa vai mudar após sua queda. Odiado pela Europa e EUA, é tido como um grande líder em países vizinhos como o Mali e até cartazes com sua imagem é possível enxergar em vários locais. Aqui, usando sua imensa fortuna, fez vários investimentos como a construção de megalômanos hotéis em várias cidades com interesse turístico. Presenteou também o país com a construção de uma mesquita na capital assim como vários outros investimentos em troca de apoio político e econômico.

 

Em represália, países europeus e os EUA, para controlar as ações do coronel líbio, impuseram várias sanções políticas e econômicas ao país. Uma delas é a criação de uma imaginária “Zona Vermelha”, na qual me encontro agora, que abrange quase que todo o deserto do Sahara. Essa região é, segundo eles, altamente perigosa e frequentada por grupos terroristas ligados a Al Qaeda financiados provavelmente pelo próprio Kadafi. Dizem até que era ele o responsável pelas ordens de sequestro de europeus e após, oficialmente, ele mesmo que negociava a liberação dos mesmos como parte do seu intrincado jogo político na região.

 

Enquanto isso o povo aqui na cidade de Timboctou sofre pela ausência de turistas e trabalho. Os poucos “tubábus” que circulam pelas ruas repletas de areia são constantemente abordados por todos os tipos de histórias e serviços em troca de pelo menos alguns reais para poderem passar o dia. A miséria ronda a cidade assim como todas as outras no país. É difícil escapar dela e os poucos que ainda tentam correm o risco de entrar num verdadeiro pesadelo atravessando o deserto rumo a Europa. Meu amigo Mohamed, durante o café da manhã, conta uma história de um grupo de cerca de 25 nigerianos que partiram daqui em um caminhão rumo ao Marrocos. Na fronteira com a Mauritânia, após alguns dias de viagem em pleno deserto, o motorista para e diz que finalmente chegaram ao destino: “Após aquelas dunas vocês estarão já no Marrocos”. E, dessa maneira, abandona o grupo a milhares de quilômetros de qualquer cidade, em pleno deserto, sem água e sem comida. De todo o grupo, apenas um sobreviveu e eu nem sequer tenho coragem de relatar como ele conseguiu.

 

Abraços e até a semana que vem.

Longe, muito longe daqui.


Vila com casas de adobe na margem do rio Niger.

Margem do rio ao anoitecer

Edson Walker