O Andarilho

23.09.2011

“A VIDA é A ARTE DO ENCONTRO”

Como dizia o nosso querido poeta Vinicius de Moraes, “A Vida é a arte do encontro”. É nele que surge a poesia, a amizade e o amor. Aperfeiçoar essa arte faz com que todos nossos desencontros percam sua importância e a vida ressurge forte e apaixonante. Viajar é uma oportunidade de potencializá-lo e essa coluna é uma dessas histórias de pessoas de diferentes culturas, cores e religiões que se reconhecem como amigos e irmãos.

 

Encontrei Limam na cidade de Chinguetti, no interior da Mauritânia. Uma cidade antiga, fundada por volta do século VIII que já viu muitas caravanas de camelos passar durante seus muitos anos de prosperidade econômica e cultural. Ele esperava-me já por várias horas pois o taxi que levou-me para lá parou muitas vezes para pegar mais passageiros, furou um pneu e fez uma parada para oração ao anoitecer.

 

Limam é um senhor de 42 anos que tem um albergue, fechado hoje em dia por causa da falta de turistas na região. Eles pararam de vir depois que os países europeus criaram um mapa com uma chamada “Zona Vermelha” que, segundo eles, está cheia de terroristas da Al Qaeda. Não encontrei nenhum daqueles barbudos que, talvez, não aparecem também por lá por causa da falta de turistas ou porque eles nunca estiveram por lá mesmo. O fato é que a cidade dependia principalmente do turismo e hoje todos sofrem muito por causa disso pois não há quase nada para fazer por lá além de esperar.

 

Chegamos no albergue já tarde da noite. Ele me apresentou o lugar e deu para ver nitidamente que ninguém visitava a casa por um bom tempo. Os quartos estão abandonados e a poeira chega até a formar dunas pelo chão. A cozinha foi a coisa mais extraordinária que já vi na vida. Nunca imaginei que alguém pudesse ser tão relapso assim com limpeza e organização. Entre comida abandonada por vários dias, panelas sujas, poeira e entulho, mal pude acreditar que o lugar é utilizado por ele frequentemente e que fosse possível cozinhar pratos tão deliciosos como ele foi capaz de fazer utilizando apenas um fogareiro e uma panela.

 

Perguntei onde eu poderia dormir e ele falou que em qualquer lugar. Podia ser numa sala relativamente limpa com carpete e sofás ou no pátio ou no terraço. Antes da janta, ficamos sentados ao redor de um pequeno fogareiro bebendo chá, olhando as estrelas e conversando, em francês, por incrível que pareça. Ele me falou sobre várias coisas muito interessantes sobre a cultura, religião e história do lugar. Explicou-me também sobre o hábito do chá que é parte muito importante do dia à dia do povo da Mauritânia. É um verdadeiro ritual que daria para escrever uma coluna inteira sobre isso.

 

A infusão é feita com chá verde chinês, açúcar brasileiro e menta fresca produzida lá mesmo. Normalmente, bebe-se um pequeno copo em 3 etapas separadas por bons momentos de conversa com os amigos ou família. O primeiro chá, explica Limam, dizem lá que é “Duro como a vida”. O segundo, “Doce como o amor”. O terceiro, “Amargo como a morte”. Esse dito popular faz todo sentido pois na primeira fervura o gosto é forte, na segunda fica já mais adocicado e na terceira, após 3 fervuras, o gosto fica amargo.

 

Limam é uma pessoa muito especial. Um homem calmo, pai de 4 filhos e 1 filha, divorciado 2 vezes segundo ele e 3, segundo o seu primo. É uma pessoa que vive de acordo com o que diz, integro pois segue o seu coração nos afazeres do dia à dia e na relação com as outras pessoas. Todo mundo na vila o conhece e falam dele com muito carinho. Querem que se candidate para prefeito mas ele não tem interesse nenhum pela política. Já visitou o Quebec no Canadá a convite de uma família que o conheceu em Chinguetti. Todo mundo admira-se que ele não ficou por lá já que esse é o sonho de muita gente aqui na África. Ele realmente não trocaria sua terra por qualquer outro sonho. Quem conhece Chinguetti entende-o perfeitamente. Aqui é o deserto mas há muita vida, amizade, estrelas e paz. Para ele não há dinheiro no mundo que possa comprar isso.

 

Poderia ir muito além falando do sábio Limam. Todas as manhãs ia junto com ele levar pão e passageiros para um oasis, uma villa, a 7 kms no meio das dunas de areia. Após, voltávamos para pegar carne de camelo no abatedouro da cidade para levar novamente ao oasis. Acho que nem preciso dizer que o lugar não passaria em nenhuma inspeção sanitária. Assustador! Cheguei lá e vi um homem sem camisa, com um cigarro na boca e um pequeno machado na mão, sentado no chão picando ossos em cima de um couro de camelo. Logo um pedaço de gordura voou e vi, como que em câmera lenta, ele grudando calmamente na minha calça. O lugar era uma cena de filme de terror.

 

Daqui a algumas horas a aventura continua. Estou agora na capital Nouakchott esperando o ônibus que vai me levar até Bamako, capital do Mali, próximo destino dessa viagem. Serão mais de 36 hrs de viagem. Sim, às vezes me pergunto porque faço isso mas aí sempre me lembro que é porque assim eu me sinto vivo.

 

Mali, aí vou eu. Insh'Allah!

Meu novo amigo Limam

Esses bichos bisonhos tem gosto parecido com a carne de gado

Cidade de Chinguetti: rota de caravanas desde o século VIII.

Edson Walker